A Igreja de Adeganha, situada no concelho de Torre de Moncorvo, é uma preciosidade românica e está classificada como Monumento Nacional desde 1944 e é dedicada ao apóstolo de Santiago Maior.
Adeganha no concelho de Torre de Moncorvo, é uma aldeia típica transmontana (perdida no tempo, mas não na geografia da “alma portuguesa”) e espreita a poente a vasta extensão do Vale da Vilariça (**), da “sua” Senhora do Castelo.
Em redor reparamos nas leiras do centeio, os olivais cobrindo os montes, a penedia granítica encrespada, e cortada por pela linearidade das falhas associadas à grande Falha do vale Vilariça.
Em pequenas construções toscas de pedra refugiam-se animais, e o granito é aproveitado para paredes ou para eiras se fazem as malhadas.
Eis o que nos diz José Saramago, na sua “Viagem a Portugal”.
«Esta estrada vai dar à aldeia de Estevais, depois a Cardanha e Adeganha. O viajante não pode parar em todo o lado, não pode bater a todas as portas a fazer perguntas e a curar das vidas de quem lá mora. Mas como não sabe nem quer despegar-se dos seus gostos e tem a fascinação do trabalho das mãos dos homens, vai até Adeganha onde lhe disseram que há uma preciosa igrejinha românica, assim deste tamanho. Vai e pergunta, mas antes pasma diante da grande e única laje granítica que faz da praça, eira e cama de luar no meio da povoação». (4)
A igreja de Adeganha é a segunda mais bela igreja românica transmontana (a primeira é para mim a igreja de São Salvador Anciães (***) – e nesta basta um portal e uma paisagem.
A igreja de Adeganha foi edificada no século XIII, segundos uns, ou no século XII, conforme afirma o Abade de Baçal. Dedicada ao Apóstolo, originalmente dotada de um alpendre exterior para albergar os peregrinos, ela situava-se num dos caminhos de Santiago de Compostela.
O bestiário da cachorrada é de grande qualidade escultural e com olhar arguto, culto e imaginoso é possível passarmos algum tempo a tentar descortinar o seu significado.
A fachada principal da Igreja de Adeganha, virada a poente, ergue-se altaneira, de dupla ventana.
O portal principal de arco-quebrado prenuncia o estilo gótico. Possui duas arquivoltas com decoração fitomórfica assente em peanhas com cabeças antropomórficas atlantes.
Três estranhas figuras femininas em baixo relevo-as Três-Marias (Três Irmãs, Três Comadres) quebram a frugalidade ornamental da fachada, estas foram imortalizadas em estranha lenda.
A do meio está a dar à luz, protegidas pelas outras duas, o que parece uma cabaça, mas que deve ser na realidade um recém-nascido, coadjuvado por duas comadres. Será um símbolo de católico das dores da Virgem no parto, a que se associa símbolos de fertilidade e camaradagem? Se assim for como estamos longe das labaredas proclamadas na lenda (umas linhas mais a frente e a lenda será narrada).
Esta cena poderá querer representar o nascimento de Jesus Cristo, com a Virgem ao centro, sendo ladeada por duas parturientes a ajudarem a Maria.
Num relevo representado imediatamente ao lado, uma quarta figura surge a correr, com utensílios na mão. Será uma representação de apoio ao parto?
O outro grupo escultórico é mais pequeno e representa um homem com dois objetos na mão que lembram dois pergaminhos. Qual o seu significado?
Num baixo-relevo, temos um casal, sendo que uma está deitada, e na sua cabeceira, de pé temos homem, com perna fletida perto da cabeça da mulher.
Este, por sua vez, expõe o sexo, enquanto na mão direita segura um objeto, tendo a outra mão junto da cabeça da mulher. Será a preparação de um ato sexual, fonte criadora da vida. Será o tratamento de um doente, mas sendo assim porque será que o homem tem a mão nas partes pudibundas? Mas talvez também seja a tal senhora gravida ou após o parto, no leito. A figura poderá ter outro significado.
Ao lado suportando uma peanha, como se fosse o peso do mundo, uma estranha figura feminina com esgar de sofrimento, de boca e olhos fechados, como dando à luz. Será um apelo a penitência e ao sacrifício, exigido aos indivíduos do mundo medieval?
Não paramos de olhar para os modilhões exteriores enigmática arte românica como, lobos, triângulos, rostos de homem e mulher, aves, bovídeos…
Todos estes símbolos enigmáticos foram criados e entendidos pela mentalidade do Homem medieval. É por essa e por outras que eu gosto do românico, o mais telúrico estilo arquitetónico e para mim um verdadeiro estado de sublimação, apesar de saber que estão ao serviço da religião com temas psicomáquicos onde se aponta os “combates da alma”, manifestados através das lutas entre os vícios e as virtudes, entre o bem e o mal,
Debaixo dois túmulos de arcossólios a relembrarem a inevitabilidade da finitude da existência.
O interior da Igreja de Adeganha de uma só nave, conserva bons frescos, a relembrar de certo modo, a capela da Nossa Senhora de Teixeira (Açoreira), redescobertos e restaurados recentemente.
Os frescos dos séculos XV e XVI, apenas no século XX foram descobertos, porque estavam tapados com uma grossa camada de cal.
É de grande beleza o enorme São Cristóvão, envolto por moldura de losangos denteados e frisos de motivos geométricos e vegetalistas estilizados; quem terá sido este artista?
A temática é hagiográfica, surgindo, na nave, temas cristológicos. O programa decorativo, integra pintura mural, pintura a óleo, e talha dourada barroca.
“A nave conserva elementos de quatro campanhas, distintas, de pintura mural, datáveis entre os últimos anos do século XV e o final da década de 30 do século XVI, com as representações de São Cristóvão (já referido), São Bartolomeu, São Longinos e Stephaton, São Francisco e a Missa de São Gregório, Santa Catarina e Santo António.
São particularmente interessantes as composições bíblicas dos primeiros momentos da vida de Cristo e Maria: Anunciação, Natividade, Apresentação no Templo e Epifania.
Na capela-mor, enquadrado por diversos motivos geométricos e outros padrões decorativos, foi pintado Santiago Maior, vestido de peregrino que se encontra escondido pelo altar barroco.” (2).
O retábulo-mor, de linguagem barroca, integra duas pinturas sobre madeira quinhentistas e que são as tábuas de “São Martinho” e “São Lourenço”, pinturas a óleo sobre madeira de castanho atribuídos a Manuel Vicente e Vicente Gil, respetivamente pai e filho, denominados como mestres do Sardoal. Pintores que foram ativos nos reinados de Dom João II e D. Manuel I e são os principais representantes da pintura manuelina Coimbrã.
Três-Marias”. Vamos então à sua lenda.
Reza a história que as Três-Marias eram irmãs e pastoras. Enquanto o gado pastava, elas entretinham-se a jogar às cartas. Mas uma das três irmãs ganhava sempre e não havia maneira de a fazerem perder, as outras duas ficavam roídas de inveja e intrigadas – Seria ela bruxa? Ou aquilo seria obra do Céu? Nem uma coisa nem outra.
Ela ganhava sempre porque jogava com manha.
Finalmente as outras duas descobriram e combinaram desforrar-se. Fizeram uma grande fogueira, com muita lenha, e empurraram para a fogueira a irmã batoteira que lá ficou a arder em grandes chamas.
Se tentava sair as outras duas não deixavam e com os dedos em “figas” diziam: Arde e ganha! Arde e ganha! E assim ficou o nome de Arde e Ganha, Adeganha.
Estranha lenda, a relembrar tempos de intolerância, materializados durante 3 séculos na inquisição portuguesa e que foi uma das páginas mais negras da nossa história – a instituição ainda hoje se repercute na nossa maneira atávica de ser e fazer.
Para não terminar a visita à igrejinha de um modo triste, e não levar os leitores para sentimentos de culpa congénitos, voltemos para rematar, a um autor que nos orgulha e que também aqui esteve.
“Enfim, a igreja é esta. Não caiu em exagero quem a gabou. Cá nestas alturas, com os ventos varredores, sob o cinzel do frio e da soalheira, o templozinho resiste heroicamente aos séculos. Quebraram-se-lhe as arestas, perderam a feição as figuras representadas na cachorrada a toda a volta, mas será difícil encontrar maior pureza, beleza mais transfigurada. A igreja de Adeganha é coisa para ter no coração, como a pedra amarela de Miranda”. (José Saramago, “Viagem a Portugal”) (4)
Nota pessoal: Estive pela primeira vez na igreja de Adeganha início da década de 90, estava então numa viagem de estudo de geologia, orientada sempre com muita sabedoria e alegria pelo Dr. Luís Nabais Conde falecido no ano de 2022. Fica uma grande saudade pelos seus ensinamentos e pela sua grande bondade e cultura. Obrigado pelos felizes velhos tempos.
Aqui está a lista dos locais notáveis do concelho de Torre de Moncorvo.
Informações adicionais:
(1)- Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
(2)-Site dos Monumentos Nacionais
(3)-A lenda foi retirada da Terra Quente (artigo de 15-3-2005)
(4)- Viagem a Portugal, José Saramago, 1980